quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Aos Joãos do mundo que sentem e não são

João tinha a alma maior que o corpo (ou seria o corpo menor que a alma?). Caminhava. Tropeçava. Caia. Machucava. Não se importava. Observava. Não se encaixava. Pelas ruas, não conseguia. Mas queria. Sabia: aquilo que sentia nele, não sentia nas pessoas. Outros sorriam sincero, ele apenas sorria. Bebia, fumava, estragava. Procurava. E, principalmente, aguardava. Esperava pelo dia que poderia sincerizar seu riso, como o resto.
Até que um dia, com muitos retalhos no corpo e a alma já úmida, concebeu: aquilo que era nas pessoas, não era nele. João tinha carne pequena pra pouco ser. João tinha espírito grande pra muito sentir. Reconhecendo em si todos os sentimentos do mundo, aceitou. Viveu. E, vivendo, viu seu corpo crescer. Sua alma, por vez, coube. Não deixou de sentir, mas passou a ser. João, então, sorriu sincero.

sábado, 27 de agosto de 2011

Gotas de você

       Antes, quando ainda respirava sua alma, sofria pela falta de você. Hoje, sou sofrimento e sou por vazio. Sei que, no fundo de minhas gavetas reviradas, a lembrança de seus lábios imanizados ainda planta raiz e por muito, quiçá para sempre, morará. Mas seria amor? Não sabia responder e essa falta de resposta secou-me a boca. Com a mão dolorida (e o que não dói?) abri uma garrafa e, quase sem pensar, consenti que os goles se misturassem e lavassem meus pensamentos. Ligeiramente fechei os olhos e, numa espécie de cena mais veloz ainda, vi-te voando e espontaneamente apanhando-me do fundo. Em teus olhos, sentia não só a tamanha profundidade que se fazia daquele momento como a reciprocidade espelhada em nossas feições, hipnotizando-nos de forma a esquecer de quaisquer resquícios que não nos fosse. Violentamente ergo as pálpebras como quem quer (e, mais do que quer, precisa) livrar-se do que vê. A fim de fugir do impertinente redemoinho que me sugava, esvazio a garrafa. O líquido, fosse ele vindo da garrafa ou dos olhos, afogava e determinava minha verdade universal: ao chegar ao fundo do poço, no fundo do copo, sempre buscarei você. Você, minha soma inconsequente sempre insistindo na “anfivida” de ora encarnar minha esperança e futuro, ora minha perdição e angústia.
       Mas, se no fundo do copo te encontro, como faço para te sumir? Sinto inveterado em mim o vício. Se o vício é você ou o copo, já não me pertence a certeza. Como tudo no mundo, não me pertence. Quase tudo, pois verifico a última gota no fundo do copo - ou do poço? - e é nessa derradeira que me encontro agora.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Pedalando no páramo

       Já é praxe, eu pensava. Introduzo o parágrafo sendo alguém, finalizo-o sendo outro. Durante o momento em que sou linha e costuro no tecido escolhidas palavras para acrescer aos meus internos registros, milhares de sentimentos ecoam em mim de forma revoltante. Querem sair, agir, modificar tudo que um dia fui e o que pretendo ser. São sentimentos que continuo sendo incapaz de traduzir - quando isso acontecer, expulsá-los-ei de mim e desabafarei: ajam! Foi quando, irritado com os borrões no papel e na vida, rapidamente levantei. Indo em direção a janela, meu olhar foi desviado ao espelho e por um breve momento analisei-me. Minha mente estava inquieta. Debrucei-me no para-peito e meus olhos foram fechados pela leve e intensa brisa que entranhava não só em minha casa como em mim. Minha casca, definitivamente, discrepava de minha essência. Isso angustiava-me. “A resposta é você! É você, meu caro!” Quando abri os olhos, ainda pude avistar o homem que gritava pedalando sua bicicleta no final da rua. Ele ainda repetiu, em meio a risadas “É você!”. E, sem mostrar o rosto, se foi. Voltei-me ao espelho e percebi que eu poderia ser quem eu quisesse, desde que fosse.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Haurindo sonhos

        Sua prova permanece em cima da mesa de estudos. Sempre que busco algo especial, toco-a e quase que devoro com os dedos. Como quem procura algo, e sabe que não mais encontrará, cheiro-a por inteiro. O perfume que antes parecia durar para sempre já evaporou. Evaporou da mesma forma que devo ter sumido da sua vida: permanecendo alguns dias em pensamento e sendo abafada por acontecimentos mais interessantes. “Isso aconteceu mesmo? Já nem lembro mais” você se perguntará com indiferença quando, por algum motivo, lembrar nossos momentos. “Aconteci” eu responderei. “E eu ainda possuo a prova. Já sem cheiro -  hei de admitir; Mas ainda esperançosa quanto a sua volta”.