De súbito
acordo, ainda madrugada, em meio a sonhos de sombras e sons. Sento na cama.
Apoio a cabeça nas mãos que seguram o mundo. O mundo que criei. Suspiro e
levanto. Visto a calça jogada na cadeira ao lado da cama, me enrosco no
primeiro casaco que encontro – um comprido e largo tricô listrado que
certamente me protegeria do frio lá fora.
Ao me olhar no espelho, enxergo. Meus cabelos bagunçadamente repicados
acima do ombro me lembram de cortar mais curto da próxima vez. Antes de virar as costas, ele, o meu reflexo,
ainda sarcasticamente questiona “é só isso mesmo?”. Era.
Abro a
porta destrancada e desço as escadas no encontro da noite. Inspirar o ar gelado
me lembra dela. A lua cobre meus pecados e cobra o que restou. Tantos monstros
ajeitadamente convivendo por aí, na minha cabeça, na sua, na deles, em todos. É duro estar aqui. Aqui, nesse mundo, jogada à vida, colocando
a cara à tapa todo dia. Parece natural, eu sei, é o que todos dizem. “Você é
tão leve, sincera, feliz”, foi o que ouvi na última terça-feira. Fingi
acreditar.
Sem muito pensar, vou tranquilamente caminhando em direção à
casa dela enquanto acendo um cigarro. A rua está vazia e a noite pesada. Que
merda que ela tenha se mudado pra perto, eu penso. Isso facilita as ocasionais
fugidas e sumiços que dou de minha própria vida quando abro os olhos e não sei
por onde começar o dia.
Virando a esquina de sua rua, olho pro alto do prédio e percebo
a luz acesa. De certa forma é um sinal, penso, mesmo sem acreditar nessas
coisas. Apago o cigarro no portão do prédio enquanto aperto o interfone e
percebo outras marcas de cigarros semelhantes e próximas a que eu acabara de
deixar. Será que ela também apaga o cigarro ali ou esse aglomerados de marcas
significam todas as vezes que perdi o controle e vim parar aqui?
O portão se abre sem sequer soar o esperado “quem é” do
interfone. Ela sabe que sou eu. Subo a escada devagar, mais hesitante que
ofegante; metade de mim sabe que não deveria ter vindo. Paro em frente a sua
porta fechada e por quatro segundos recordo de minha última vez aqui, quando
saí pela mesma porta, com os olhos exauridos pelo choro e a certeza de que
nunca mais voltaria.
“Tá aberta”
em voz alta ela afirma, e eu repouso minha mão sobre o gelado trinco da porta.
Respiro e abro; e abro junto com minha surpresa ao ver seu apartamento todo
mudado. Dou um passo a frente e encontro CD’s que desconheço espalhados, livros
pelo sofá, a ausência de nossos quadros na parede e uma garrafa seca de vinho
no chão, junto de seu caderno de desenhos que enquadravam alguns rabiscos. O
sofá noutro canto da sala, o armário meio vazio em frente ao corredor e uma
luminária nova que presenteava o ambiente com uma luz amarela encantando toda
sua bagunça sincera. Parada, passo os olhos pelo espaço que tanto já explorei e
não é mais o mesmo, e encontro-a escorada na janela, de camiseta larga e
vestindo a cueca que a comprei numa tarde do inverno passado simplesmente por
achar que ficaria linda nela. Ainda fica.
“Você mudou
as coisas por aqui, né” eu digo meio acanhada enquanto ela inclina o corpo na
minha direção e diz “vem”. Em dois segundos eu já estou em seus braços me
perguntando como consigo ficar tanto tempo longe de seus lábios que percorrem
meu rosto levemente beijando cada centímetro de mim. Quer vinho, ela pergunta,
e eu balanço a cabeça afirmativamente. Bastou ela se afastar em direção à
cozinha para que eu entendesse tudo - o jeito como caminha, a maneira como
prende o cabelo, o sorriso de meia boca quando me olha, a risada que dá quando deixa
pingar um pouco de vinho na mesa e o modo como encanta em um cenário que não
mais me pertencia. Era ela. Era amor. E eu não sei amar.
Vamos sair
daqui, eu disse. Deixa o vinho, vamos caminhar, tomar um ar. Ela simplesmente largou
tudo, vestiu uma roupa qualquer, sem falar nada, e em poucos instantes estava pronta
ao lado da porta, apenas esperando que eu sorrisse e caminhasse ao seu lado. Já
estava quase amanhecendo e ela me abraçava forte, meu braço por cima de seu
ombro, e nossos passos como que ensaiados passeavam pelo bairro. “Desculpa não
conseguir ficar na sua casa” balbuciei. Maria me olhou, desenhou perfeitamente
o meio sorriso em seu rosto e conduziu-nos a virar na esquina seguinte.
Ao
chegar em frente ao meu apartamento, pegou as chaves em meu bolso, abriu as
portas e foi entrando. Deitou em minha cama repousando o braço aberto,
esticado, como um convite. Meu coração pulsava freneticamente e eu tentava
disfarçar a respiração ofegante causada pelos batimentos cardíacos bizarramente
acelerados. Eu só queria deitar em seus braços, olhar em seus olhos e dizer que
a amava, abraça-la e dividir meus pesadelos de sombras e sons. Queria ser leve,
sincera, feliz, como os outros me viam. Mas era ela. Era amor. E eu não sei
amar.
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