quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Era amor.

De súbito acordo, ainda madrugada, em meio a sonhos de sombras e sons. Sento na cama. Apoio a cabeça nas mãos que seguram o mundo. O mundo que criei. Suspiro e levanto. Visto a calça jogada na cadeira ao lado da cama, me enrosco no primeiro casaco que encontro – um comprido e largo tricô listrado que certamente me protegeria do frio lá fora.  Ao me olhar no espelho, enxergo. Meus cabelos bagunçadamente repicados acima do ombro me lembram de cortar mais curto da próxima vez.  Antes de virar as costas, ele, o meu reflexo, ainda sarcasticamente questiona “é só isso mesmo?”. Era.

Abro a porta destrancada e desço as escadas no encontro da noite. Inspirar o ar gelado me lembra dela. A lua cobre meus pecados e cobra o que restou. Tantos monstros ajeitadamente convivendo por aí, na minha cabeça, na sua, na deles, em todos. É duro estar aqui. Aqui, nesse mundo, jogada à vida, colocando a cara à tapa todo dia. Parece natural, eu sei, é o que todos dizem. “Você é tão leve, sincera, feliz”, foi o que ouvi na última terça-feira. Fingi acreditar.

Sem muito pensar, vou tranquilamente caminhando em direção à casa dela enquanto acendo um cigarro. A rua está vazia e a noite pesada. Que merda que ela tenha se mudado pra perto, eu penso. Isso facilita as ocasionais fugidas e sumiços que dou de minha própria vida quando abro os olhos e não sei por onde começar o dia.

Virando a esquina de sua rua, olho pro alto do prédio e percebo a luz acesa. De certa forma é um sinal, penso, mesmo sem acreditar nessas coisas. Apago o cigarro no portão do prédio enquanto aperto o interfone e percebo outras marcas de cigarros semelhantes e próximas a que eu acabara de deixar. Será que ela também apaga o cigarro ali ou esse aglomerados de marcas significam todas as vezes que perdi o controle e vim parar aqui?

O portão se abre sem sequer soar o esperado “quem é” do interfone. Ela sabe que sou eu. Subo a escada devagar, mais hesitante que ofegante; metade de mim sabe que não deveria ter vindo. Paro em frente a sua porta fechada e por quatro segundos recordo de minha última vez aqui, quando saí pela mesma porta, com os olhos exauridos pelo choro e a certeza de que nunca mais voltaria.

“Tá aberta” em voz alta ela afirma, e eu repouso minha mão sobre o gelado trinco da porta. Respiro e abro; e abro junto com minha surpresa ao ver seu apartamento todo mudado. Dou um passo a frente e encontro CD’s que desconheço espalhados, livros pelo sofá, a ausência de nossos quadros na parede e uma garrafa seca de vinho no chão, junto de seu caderno de desenhos que enquadravam alguns rabiscos. O sofá noutro canto da sala, o armário meio vazio em frente ao corredor e uma luminária nova que presenteava o ambiente com uma luz amarela encantando toda sua bagunça sincera. Parada, passo os olhos pelo espaço que tanto já explorei e não é mais o mesmo, e encontro-a escorada na janela, de camiseta larga e vestindo a cueca que a comprei numa tarde do inverno passado simplesmente por achar que ficaria linda nela. Ainda fica.

“Você mudou as coisas por aqui, né” eu digo meio acanhada enquanto ela inclina o corpo na minha direção e diz “vem”. Em dois segundos eu já estou em seus braços me perguntando como consigo ficar tanto tempo longe de seus lábios que percorrem meu rosto levemente beijando cada centímetro de mim. Quer vinho, ela pergunta, e eu balanço a cabeça afirmativamente. Bastou ela se afastar em direção à cozinha para que eu entendesse tudo - o jeito como caminha, a maneira como prende o cabelo, o sorriso de meia boca quando me olha, a risada que dá quando deixa pingar um pouco de vinho na mesa e o modo como encanta em um cenário que não mais me pertencia. Era ela. Era amor. E eu não sei amar.


Vamos sair daqui, eu disse. Deixa o vinho, vamos caminhar, tomar um ar. Ela simplesmente largou tudo, vestiu uma roupa qualquer, sem falar nada, e em poucos instantes estava pronta ao lado da porta, apenas esperando que eu sorrisse e caminhasse ao seu lado. Já estava quase amanhecendo e ela me abraçava forte, meu braço por cima de seu ombro, e nossos passos como que ensaiados passeavam pelo bairro. “Desculpa não conseguir ficar na sua casa” balbuciei. Maria me olhou, desenhou perfeitamente o meio sorriso em seu rosto e conduziu-nos a virar na esquina seguinte.

Ao chegar em frente ao meu apartamento, pegou as chaves em meu bolso, abriu as portas e foi entrando. Deitou em minha cama repousando o braço aberto, esticado, como um convite. Meu coração pulsava freneticamente e eu tentava disfarçar a respiração ofegante causada pelos batimentos cardíacos bizarramente acelerados. Eu só queria deitar em seus braços, olhar em seus olhos e dizer que a amava, abraça-la e dividir meus pesadelos de sombras e sons. Queria ser leve, sincera, feliz, como os outros me viam. Mas era ela. Era amor. E eu não sei amar. 

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